Como foi possível as férias terem encurtado tanto, em tão poucos anos!
Dantes, chagava aquele mês de férias e íamos um mês de férias. Com a democratização da vida política e social, podemos repartir as férias, meter dias de férias, a torto e a direito, enfim quando chega o mês de férias… é pouco mais de uma semana.
Se antigamente as férias já eram uma correria – que o testemunham tantos mortos, especialmente de emigrantes que retornavam para férias, de Paris à aldeia, por estrada, sem paragens, além daquela paragem fatal – agora são-no muito mais. Além do mais, mesmo em estradas de má qualidade, não conseguimos apagar aquele jeito de guiar como se fôssemos em auto-estrada, tal é o hábito de as usarmos e de termos tantas.
Quando vamos para a praia, já sabemos todos qual o horário que temos de praticar para não nos sujeitarmos às radiações que provocam cancro da pele e que são causadas pelo uso indevido do planeta que estragou a camada atmosférica, impedindo a sua acção de filtragem da luz solar.
Para aproveitar o melhor possível o tempo na praia, temos de ir a correr pela estrada fora, desde casa até lá, porque isto de levantar cedo nas férias não dá jeito. Nem em tempo de trabalho, quanto mais nas férias! E quando chega a hora malfadada do sol apertar, saímos da praia a correr. Uns vamos apressados para o restaurante, cheios de fome, outros vamos para o picnic (Sim! Ainda há quem os faça), outros ainda vamos com pressa tomar banho a casa ou ao hotel, para depois almoçar.
Aquele fulano ia a guiar o carro para o picnic, com a família, depois de saírem da praia, ao meio dia. Devagarinho, na estrada que cruzava o pinhal, à procura de um lugar bom, sem lixo, clareira aberta, com sombra, sem valeta a transpor da estrada para a entrada no pinhal. Ora, isto é tarefa difícil, como se percebe.
Pai: Que tal aqui?
Filha: Já tem muitos carros.
Mãe: E ali, daquele lado da estrada?
Pai: Há traço contínuo, só se for lá à frente fazer inversão de marcha.
Filho mais velho: Aqui também não dá, porque não podemos jogar à bola.
Mãe: Nem ali, que não tenho árvores para a minha cama de rede.
Filho mais novo: Ali, ali parece-me bem.
Todos: Sim, ali.
O pai sinaliza o pisca, abranda ainda mais a marcha e começa a sair da estrada para o pinhal.
Ora, como já anteriormente reparámos, nem todos se podem dar a este luxo de escolher com atenção e tempo o lugar para o almoço de picnic. As pessoas, especialmente os condutores, dos carros atrás desta família vinham já super-irritadas com a demora, cada um encostando ao carro da frente, vociferando asneiras dentro do seu próprio carro, tentando tais pessoas convencer-se que assim se despachavam mais depressa. E se não despachavam, ao menos aliviavam a tensão de ir atrás daqueles atrasados mentais que pareciam ir em passeio. Raios! Gozar as férias requer atenção, organização, empenho, não é nenhum passeio para amadores sem nada que fazer.
Quando a tal família do picnic começou a virar para dentro do pinhal, quase a velocidade zero, por causa do desnível da estrada – que agora parece fazerem de propósito estes desníveis – ouviu-se um tremendo estrondo. Pareciam as panelas da lembrança da minha infância, naqueles maravilhosos penduros na parede da cozinha, que quando caía uma, iam todas atrás pum-catrapum-tá-lá-lá-pim-catrapim a bateria toda no chão da cozinha, em batidas agudas de lata a tinir, que, não sei porquê, sempre me evocou a Sagração da Primavera de Stravinsky. Ouvir aqui
Rapidamente o carro que vinha logo atrás ultrapassou os do picnic, mesmo sem pisca – ou será que já levava pisca aberto há cinco minutos, para estar preparado para se livrar daqueles empatas na primeira oportunidade? – mas os outros ficaram todos imobilizados no sítio em que tinham parado.
O carro que vinha em quarto lugar na fila, tinha batido no que vinha à sua frente, em terceiro lugar. Pararam e pararam todos. Lentamente, os de trás começaram a ultrapassá-los e a continuar as suas vidas, ignorando o incidente. Os carros acidentados encostaram à berma da estrada, sem triângulos, sem coletes reflectores… afinal ali no meio do pinhal, para quê? Aparentemente, ambos os carros estavam de boa saúde. O casal e os filhos que viajavam no carro que bateu saíram olharam ambos os carros e pensaram logo em seguir viagem. Mas o casal do carro que sofreu o embate não estava assim tão seguro da situação. Inspeccionaram todo o seu carro, um Passat daqueles grandes e de aspecto forte, verificaram se o carro não tinha dobrado no meio com o ligeiro embate do pequeno Clio e prepararam-se para a Declaração Amigável de Seguro. Os de trás não estavam pelos ajustes, nem queriam acreditar, mas não lhes restou alternativa. O senhor do carro vitimado, embora este não tivesse quaisquer mazelas visíveis, mas que ele sabia que poderiam vir a surgir depois, ia preenchendo a Declaração, com muita conversa a intervalar sobre cuidados a ter na condução, deixando cada vez mais exasperados os do carro que bateu.
Os do picnic, entretanto, tinham-se instalado e iam almoçando e vendo o espectáculo da Declaração Amigável.
No final, o filho mais velho até se esqueceu que queria jogar à bola e foram embora, até ao café mais perto, comer gelados. Pouco depois de eles abalarem, os do acidente foram também às suas vidas, embora os que bateram por trás fossem visivelmente irritados com a demora.
Há pressas que são assim. A ira ultrapassa a razão e a tolerância e prejudica os irados e os outros. Neste caso, os outros foram os do carro que sofreu o embate. Seria o condutor da viatura vitimada também um dos que iam enervados com a demora? Nunca o saberemos. Mas sabemos que os do picnic, que não fizeram mal a ninguém, só trataram das suas vidas, sim, não foram eles os causadores da instabilidade emocional dos que queriam a estrada só para si, neste caso não saíram molestados.
Quantos saem de casa para gozar um tempo de férias, sem terem a noção do que isso significa? Dão cabo das suas vidas e das vidas dos outros. Infelizmente, os outros, são tantas vezes a pessoa amada do banco do lado e as pessoas amadas do banco de trás, além dos desconhecidos, os terceiros que levam com eles em cima.
Em todo o tempo de férias há sempre vítimas e há sempre irresponsáveis que vitimam inocentes. Cuidado na condução, cuidado nos locais onde entrar na água, com tantos cuidados esta história que pretendia ser irónica e com certo humor ainda acaba em sermão. Mas se sermões destes evitassem tragédias, viúvas e viúvos, filhos órfãos e pais órfãos de filhos, pessoas em viaturas abalroadas que num segundo se passam para o céu, sem saber o que lhes aconteceu nem como lá chegaram, então os sermões valiam a pena.
Este vai ser lido, quando o leitor chegar a meio (terá paciência para tanto?), talvez sorria, mas não será este sermão (será mesmo sermão?) que irá alterar a inevitabilidade dos que já programaram os homicídios e suicídios que vão cometer durante estas férias. Involuntários? Que interessa aos que ficam a chorar!
Orlando de Carvalho